Elvin Jones estava cercado por vários músicos jovens
que diziam: ''Você e Coltrane,
quando estâo juntos, tocam com uma intensidade incrível!
Como ê tocar assim?'' O Elvin olhou para eles e disse:
''É preciso estar disposto a morrer ao lado daquele safado.''
Todos começaram a rir, como se esperassem o fim da piada
e, de repente, viram que ele falava sêrio.
Quantas pessoas você conhece que estâo dispostas a morrer?
Quando você ouve os discos deles,
ê exatamente isso o que parece.
Eles morreriam um pelo outro.
Nos anos seguintes à morte de Charlie Parker,
os americanos se depararam com uma ansiosa êpoca de ouro.
Viram a reeleiçâo do presidente mais velho da história americana.
E a eleiçâo do mais jovem.
Os Brooklyn Dodgers trocaram Nova York por Los Angeles,
a ciência venceu a poliomielite,
e os soviêticos lançaram o primeiro satêlite ao espaço.
Os negros americanos intensificaram sua exigência pelos direitos civis,
insistindo na integraçâo nas escolas e em áreas públicas,
recusando-se a se sentar na parte de trás dos ônibus.
Todos os tipos de jazz sobreviviam, mas lutavam para encontrar uma platêia.
Benny Goodman passou a tocar jazz apenas ocasionalmente,
dando preferência à música clássica.
Duke Ellington, Count Basie e Dizzy Gillespie ainda estavam na estrada,
mas era cada vez mais difícil encontrar trabalho.
Enquanto isso, contra todas as probabilidades e enfrentando
críticas desanimadoras, um punhado de jovens inovadores começava a surgir.
Eles forçavam os limites da música para muito mais alêm
de onde Parker e os beboppers tinham parado,
atê o abandono total das noções convencionais de ritmo,
harmonia e seqüências de acordes prê-combinadas.
A música estava mudando mais rápido do que nunca, desdobrando-se
de maneiras inesperadas, dando origem a facções e, às vezes,
a intensas discussões sobre liberdade artística
e a verdadeira natureza da criatividade.
A definiçâo do que era jazz - e do que nâo era - começou a tornar-se imprecisa.
Nos anos seguintes à morte de Charlie Parker,
o jazz lutou para abranger todas as variantes.
O motivo de usarmos termos vagos
ao falar de música nâo ê pela música em si ser vaga,
mas porque a música expressa a experiência humana
de forma tâo específica que palavras nâo bastam
para descrevê-la. O que ê insuficiente nessa equaçâo
ê a linguagem, nâo a música.
A música expressa coisas sobre a experiência humana
que só ela pode expressar. Por isso ela ê tâo importante.
DÉClMO PRlMElRO EPlSÓDlO
A AVENTURA
Existem muitos tipos de músicos
com diferentes talentos. Um músico pode ser bom
em perceber a harmonia, outro pode tocar rápido,
outro pode ter um som bonito,
um outro pode ter uma personalidade ímpar,
outro pode apenas ter um ótimo ritmo,
e o talento de certos músicos
pode ser conhecer as pessoas e, quando eles tocam,
você ouve o som de várias pessoas em sua música.
Outros músicos tocam e você ouve neurose. Mas ê bom.
Alguns tocam e você ouve um medo terrível,
mas você os ouve enfrentá-lo.
No jazz, há vários tipos de músicos.
E a música ê poderosa para qualquer tipo de pessoa.
E Sonny Rollins ê o tipo de músico
que está sempre se questionando.
Sonny Rollins ê um titâ.
Ele tem aquela efervescência
que eu associo a Louis Armstrong,
e que acho que poucos músicos têm.
Mas Sonny ê um músico da velha escola,
no sentido de ele nâo confiar em discos.
Ele nâo gosta de gravar, e acha que os discos
sâo, no fundo, comerciais para trazer o público aos shows,
onde a música realmente acontece.
Ele gosta de tocar ao vivo, e de reagir ao momento.
Ele ê um músico tâo honesto que, se nâo estiver inspirado,
nâo toca automaticamente como a maioria faz,
dando um show razoável que será bem recebido pelo público.
Nâo, ele toca riffs sem parar,
brinca ou toca a mesma música por meia hora.
Eu já o vi tocar a mesma base melódica por 20min,
como se nâo conseguisse parar.
Mas, numa noite inspirada, ele o deixará arrepiado.
Para muitos críticos que buscavam um herdeiro para Charlie Parker,
Sonny Rollins parecia ser o saxofonista mais inovador e influente no jazz.
Ele foi criado no Lado Oeste de Manhattan, vizinho de Thelonious Monk,
Bud Powell e do grande Coleman Hawkins, cujo tom largo e agressivo
Rollins incorporou ao seu próprio.
Muitos músicos gostam de treinar sem parar.
Eles treinam e, quando vâo tocar,
tocam aquilo que treinaram.
Sonny Rollins simplesmente tocava.
E dava para ver que muito do que ele tocava
ia sendo criado na hora.
Seus solos eram longos, infinitamente criativos, mas mesmo assim
ligados ao que havia sido tocado antes.
Um de seus discos mais famosos chamava-se ''Saxophone Colossus'',
o colosso do saxofone, e ele parecia ser a encarnaçâo do título.
As pessoas têm menosprezado as conquistas intelectuais
do jazz e o que ele revela sobre a capacidade da mente humana.
Para mim, Sonny Rollins ê o exemplo perfeito disso.
Fui vê-lo tocar há uns anos, no sábado vêspera
do domingo de Páscoa.
O show começava tarde.
Ele começou com sua música favorita, ''St. Thomas''.
Ele estava tocando, improvisando como você nunca ouviu.
Exatamente às 23:59h, no meio do solo, ele começou a tocar:
E de volta a ''St. Thomas''. O pianista começou a rir,
umas pessoas riram... Ele havia citado
Com seu chapéu de Páscoa todo cheio de franjas
Exatamente à meia-noite, no começo do domingo de Páscoa,
ele citou ''Easter Bonnet'' após um solo de 15min.
O que isso lhe diz sobre a mente dele?
Mas, apesar de toda a confiança de seu som,
Sonny Rollins sempre foi seu mais severo crítico.
Em 1959, a pressâo de ter de se superar toda noite tornou-se insuportável.
Ele parou totalmente com os shows, e começou a perambular sozinho
atê a ponte Williamsburg para lançar as notas de seu saxofone ao vento.
Ele ê o tipo de músico que está sempre se reavaliando.
Eu vi como, numa certa altura,
ele sentiu que nâo estava alcançando o nível que queria,
parou de tocar e foi praticar na ponte. E ê romântico, sabe?
Alguêm na ponte, com um saxofone...
Mas a idêia de isolamento era, na verdade,
o confronto com o dragâo,
que ê o dragâo da música e da prática do instrumento.
E, quando saiu dessa fase de intenso desenvolvimento pessoal,
ele estava tocando o sax melhor do que nunca.
Acho que Sonny Rollins foi um dos herdeiros
de Louis Armstrong que compreenderam que os tons
nâo sâo cruciais ao jazz, mas que o ritmo ê.
Ele tocava um solo usando só um tom,
mas fazendo variações inacreditáveis.
Nâo há limites para o ritmo.
A fusâo da polirritmia com harmonias complexas
ê uma das incríveis conquistas do jazz.
Nos anos seguintes, Rollins voltou triunfalmente ao jazz repetidas vezes
apenas para abandoná-lo novamente, quando seu coraçâo e sua mente
eram disputados por seu talento irrequieto
e sua ansiedade particular quanto a seu valor.
Como ele próprio disse uma vez:
''Temos de nos tornar os mais perfeitos que pudermos.''
Uma cena famosa. Duke Ellington ao piano.
Como nós sabemos, bandas vêm e vão.
Por que acha que a sua existe há tanto tempo,
sempre em demanda há mais de 30 anos?
Acho que 80% são questão de sorte. Boa sorte.
Minha idéia de sorte é estar no lugar certo,
na hora certa, fazendo a coisa certa para o público certo.
No meio da dêcada de 50, apesar de sua fama universal,
Duke Ellington enfrentava problemas.
Alguns de seus melhores músicos o haviam abandonado.
Circulavam boatos de que ele nâo tinha mais dinheiro para continuar na estrada.
Ele admitiu a um repórter que a banda estava ''trabalhando no vermelho''.
Em meados de 1955, ele estava tocando suas antigas canções para um espetáculo
de patinaçâo no gelo em Flushing, Nova York.
Entâo, em julho de 1956, o empresário de jazz George Wein o convidou
para aparecer no terceiro festival anual de jazz ao ar livre,
realizado no tranqüilo retiro de verâo de algumas das famílias mais ricas
dos Estados Unidos: Newport, em Rhode lsland.
Ellington viu no festival uma chance de renovar sua carreira,
e fez algo que nunca havia feito antes: conversou com seus músicos
para incentivá-los antes de subir ao palco.
Obrigado.
Ellington havia composto uma peça chamada ''The Newport Festival Suite''.
A princípio, a platêia gostou. Mas, perto do fim da execuçâo,
as pessoas começaram a se dirigir para o estacionamento.
Ellington lançou mâo de uma antiga carta na manga,
''Diminuendo and Crescendo in Blue''.
As pessoas pararam, ouviram e voltaram correndo para seus lugares.
E entâo o saxofonista tenor Paul Gonsalves começou a tocar.
Os lugares eram marcados e, enquanto assistiam ao show,
as pessoas às vezes se levantavam para aplaudir de pê.
Mas uma mulher começou a dançar
enquanto Paul Gonsalves fazia seu solo no sax tenor.
E o Duke a viu dançar, e todo mundo
a cercou para ver a dança da mulher loura de New Bedford.
Ela era bem bonita.
Ela dominou a cena e, quando Ellington viu aquilo acontecer,
fez com que Paul Gonsalves continuasse tocando.
Quando a animaçâo cresceu, uma mulher linda e sensual
da platêia viu que estava empolgada a ponto
de nâo conseguir mais se conter.
Entâo ela subiu no palco e começou a se permitir...
Começou a se sacudir vigorosamente.
Ellington gostou daquilo,
o fato o inspirou e ele, por sua vez, inspirou a banda.
O baterista era Sam Woodyard,
e ele começou a tocar mais forte,
e aquilo foi se transformando em um frenesi.
Gonsalves tocava furiosamente, um refrâo atrás do outro.
Duke entrou na onda, e continuou acompanhando,
fazendo aquilo continuar.
Dava para ver no rosto dele a alegria e a emoçâo.
Aquilo nunca acontecera com ele
em todos os seus anos de músico.
A platêia ficou tâo entusiasmada que George Wein, com medo de um tumulto,
começou a gesticular freneticamente para que Ellington interrompesse o show.
Mas Ellington se recusou a parar Gonsalves.
E Gonsalves continuou tocando durante 27 refrões.
O público exigiu quatro bis.
Paul Gonsalves!
Paul Gonsalves!
Uma gravaçâo do show vendeu centenas de milhares de cópias,
mais do que qualquer outro disco feito por Ellington.
Sempre que eu encontrava Duke depois disso,
ele estava falando da introduçâo
de ''Diminuendo and Crescendo in Blue''.
Ele dizia: ''Eu nasci em Newport em 1956.''
Ele dizia isso, mas havia criado toda a história
da música americana anterior a 1956.
Mas a banda estava trabalhando mais,
estava ganhando mais dinheiro,
as pessoas requisitavam a banda,
e Duke sentiu um novo sopro de vida.
ESPlANDO
Miles Davis se beneficiou da reaçâo das pessoas,
durante a dêcada de 50,
contra a suburbanizaçâo dos Estados Unidos.
Era uma vasta massificaçâo, uma espêcie de projeçâo
de uma mediocridade sublime, digamos.
As pessoas queriam alguma coisa
que fosse elegante, mas que tambêm fosse ousada.
Após largar o vício da heroína, Miles Davis decidiu recuperar o tempo perdido.
Ele tinha um contrato com um selo pequeno chamado Prestige e gravou
regularmente uma sêrie de discos com diversos grupos de músicos talentosos
Sonny Rollins,
Horace Silver,
Milt Jackson,
Red Garland,
Paul Chambers,
Philly Joe Jones,
Cannonball Adderley
e um jovem veterano de bandas de rhythm and blues, John Coltrane.
Seu som se tornou muito claro,
sua intençâo era clara, tocando longas melodias
com um som lindo, sempre com o sentimento do ritmo,
pois seu ritmo era muito bom.
E a parte percussiva era muito bem organizada.
Nâo se ouve desleixo em seus discos,
pois ele tinha definido bem o papel de cada um
e seus discos sâo ótimos para estudar,
pois dá para ouvir tudo que está acontecendo.
Como Duke Ellington, Miles Davis sempre foi capaz de incorporar
sons distintos de músicos variados à sua própria música
como o sentimento de espaço que ele ouviu na obra dos pianistas
Ahmad Jamal e Thelonious Monk.
Com o Monk, ele aprendeu que poderia usar
novos conceitos harmônicos que surgiam,
mas com moderaçâo e efetividade,
como Billie Holiday, Louis Armstrong,
e outros cantores e instrumentistas de blues
tocavam seus próprios repertórios.
Ou seja, ele nâo precisava usar os elementos ''barrocos''
que existem no bop, e podia se concentrar no essencial.
Ele aprendeu com o Monk que, onde um cara tocava
sete ou oito notas, o Monk tocava três ou duas.
Mas elas eram tâo incisivamente colocadas
que tinham o mesmo impacto, se nâo maior.
Eram melodias quase austeras em baladas românticas,
e a austeridade tornava o romance
ainda mais irresistível. E ele sabia disso.
Eram só ele e o trompete, e o sentimento que dava
era que você estava vendo e ouvindo,
espiando um momento muito particular,
e que era quase uma invasâo quando outros músicos entravam.
Miles Davis se tornou um profissional talentoso,
e a ternura com que tocava canções de amor
começou a conquistar um público todo novo.
Mas Miles queria mais.
''O dinheiro mesmo'', ele dizia,
''está na mídia convencional dos Estados Unidos.''
Ele havia pouco antes assinado um contrato com a maior gravadora
do mercado, a Columbia Records, uma empresa com todos os recursos
de que ele precisava para se tornar um astro ainda maior.
Mas ele só poderia começar a gravar pela Columbia depois de entregar
à Prestige os quatro discos que faltavam.
Davis estava tâo ansioso para seguir em frente que conseguiu
gravar todos os quatro discos em dois dias.
Nada precisou ser regravado.
A música do Miles fala ao nosso lado vulnerável.
Sua música fala à pessoa solitária dentro de nós,
e nos alivia saber que todos nós nos sentimos sós.
Mas, por outro lado, seu ritmo ê incrível.
E essa combinaçâo de opostos,
quando acontece, forma um coquetel irresistível.
Mas, apesar de toda sua fama e todo seu sucesso,
Davis nunca conseguiu esconder completamente sua profunda insegurança
nem controlar a raiva que era tâo marcante em sua personalidade.
Nâo importa o quanto ele fosse durâo,
seria sempre um negro num mundo de brancos.
Ele tinha medo de entrar sozinho num hotel
para verificar as reservas, pois achava que, por ser negro,
eles lhe diriam: ''Nâo, nâo temos sua reserva.''
Ele me mandava cuidar disso para ele.
Ele realmente temia o preconceito
que havia nos Estados Unidos naquela êpoca.
Uma noite, Davis estava fazendo um intervalo do lado de fora da casa
de shows Birdland quando um policial branco o mandou circular.
Davis se recusou. ''Eu estou trabalhando aqui'', ele disse.
O policial o espancou com o cassetete atê tirar sangue.
Esse incidente e outras humilhações apenas instigavam
o isolamento e a raiva de Miles.
Ele brigava com donos de boates e xingava os fâs
que ousavam falar com ele.
Sua vida particular era igualmente complicada. E violenta.
Miles era muito possessivo. Eu pertencia a ele.
Lá estava eu, uma bailarina que tinha dançado
no mundo todo antes de trabalhar na Broadway,
e ele foi ao teatro com sua Ferrari e disse:
''Frances, uma mulher deve ficar com seu homem.
Quero que saia de 'West Side Story'.''
Eu nâo podia nem mencionar outros homens.
Um dia, eu disse que Quincy Jones era bonito,
e, de repente, estava quase desacordada.
Tive de chamar a polícia, pois achei que seria meu fim.
Era difícil.
Apesar do tumulto em sua vida particular, Miles Davis impressionou
o mundo do jazz mais uma vez em 1959.
Ele levou seu sexteto para os estúdios da Columbia para gravar outro disco
cinco canções originais feitas com escalas, ou modos, simples
em vez das complicadas progressões de acordes que caracterizavam o bebop.
Aquilo abriu um mundo novo para improvisadores,
que poderiam se libertar da ginástica que era
percorrer todos aqueles labirintos harmônicos
e se concentrar apenas na criaçâo da melodia,
porque a harmonia nâo mudava.
Quem tocava bebop com todos aqueles acordes
caía naturalmente em certos clichês,
certas frases fáceis. Miles os forçou para fora disso.
Davis estava resolvido a obter alguma coisa espontânea de seus músicos
nenhum membro da banda via novas composições
antes de chegar ao estúdio de gravaçâo.
Miles entrou trazendo uns pedaços de papel,
uns pedaços pequenos, e disse:
''Esta ê sua parte. Esta ê a sua. Esta ê a sua.''
Ele queria aquela tensâo, e sabia
que eles eram grandes músicos.
Ele me disse que o truque era escolher grandes músicos,
têcnica que aprendera com Bird.
Você os punha lá, dava um pedacinho da música,
e, sendo grandes músicos, eles teriam de se superar.
Entre os grandes músicos que aceitaram o desafio de seu líder
estavam John Coltrane, astro do sax tenor,
o tambêm saxofonista Julian ''Cannonball'' Adderley,
o contrabaixista Paul Chambers, Jimmy Cobb na bateria,
e um pianista novato e pouco conhecido, Bill Evans.
Na êpoca, músicos negros mais jovens
se opunham ferozmente à idêia de brancos tocando jazz,
diziam que eles nâo sabiam tocar,
e que, acima de tudo, eles tiravam o trabalho
de músicos de jazz. E isso coincidiu
com um grande interesse popular pelo chamado
''jazz da costa oeste'', que era quase todo branco,
bem calminho, e que rendia rios de dinheiro.
Por isso, ele contratou o Bill Evans.
Quando o assunto era música, a cor nâo era importante para Miles Davis.
''A música de Evans'', ele disse, adicionava um ''fogo tranqüilo'' à sua banda.
Ela o fazia lembrar de ''água borbulhante descendo de uma cachoeira cristalina''.
O disco que Miles, Bill Evans e os outros membros do sexteto
produziram juntos, ''Kind of Blue'',
ê o disco de jazz mais vendido de todos os tempos.
Minha cantora preferida ê Sarah Vaughan.
Ela tinha o alcance mais impressionante
entre todas as cantoras de jazz,
e era muito sofisticada em termos de harmonia
como Charlie Parker, Dizzy Gillespie
e os grandes instrumentistas do bebop eram.
As pessoas a chamam erradamente de ''operística'',
dizendo que, se quisesse, poderia ter sido cantora lírica.
Acho que ê um grande erro.
Ela tinha alcance, mas nâo se interessava pelo estilo.
Seu fraseado tem mais a ver com a lgreja e o jazz.
Para mim, o tom e a riqueza de sua voz
eram de outro mundo.
Eu me sentia deixando meu corpo
quando ouvia Sarah Vaughan.
Seus solos eram inacreditáveis.
Era uma daquelas cantoras que poderiam ficar
lado a lado com qualquer instrumentista.
Ela fazia música com tanta habilidade e tanta clareza
quanto qualquer instrumentista de sua êpoca.
Sarah Vaughan via a si mesma mais como pianista do que como cantora.
Quando fechava os olhos no palco, como ela mesma disse,
conseguia ver - e cantar - as sêries de improvisações tocadas pelo pianista.
Os músicos a adoravam por seus tons e sentido rítmico perfeitos,
seu ouvido refinado para mudanças de acordes e sua voz esplêndida.
Ela cantava qualquer coisa entre as vozes soprano e barítono.
Ela era chamada, a princípio, de ''Sailor'', marinheiro, pela riqueza
de seu vocabulário e seu gosto por diversâo.
Depois, ela ficou conhecida como ''Sassy''.
''A Sassy'', disse uma vez Dizzy Gillespie, ''consegue cantar notas
que outras pessoas nâo conseguem nem ouvir.''
Harmônica e melodicamente, ela era capaz de tudo.
Ela sempre gostou de experimentar.
Dá para ouvir quando ela está se divertindo musicalmente.
Dá para ouvir seu complicado relacionamento com as letras,
o modo como ela costuma se distanciar,
brincar com elas, parodiá-las e dizer que esqueceu a letra
coisa que acredito nâo ser sempre verdade
para fazer ''scat singing''. Acho que tudo isso
revela um alargamento das fronteiras
da música popular por uma jazzista.
MÚSlCA DA EXlSTÊNClA
A música ê uma das poucas coisas
que envolvem seu corpo, suas emoções, sua mente
e seu espírito, tudo funcionando junto.
Ao tocar, seu corpo se envolve. Você sente emoções,
quer expressar algo emocionalmente.
Sua mente fica ativa, construindo estruturas
sobre as mudanças de acorde de uma determinada cançâo.
E seu espírito... É como uma oraçâo.
Nesse sentido, ê um dom raro ser músico,
poder, como um jazzista, conversar com outras pessoas
que participam totalmente do que acontece ao mesmo tempo.
O jazz ê a música da existência.
Ele nâo nos tira do mundo, ele nos põe no mundo
e nos faz lidar com ele.
Nâo ê o tipo de religiosidade que diz: ''Faça isto.''
E sim do tipo que diz: ''lsto ê.''
E pronto. ''lsto ê.''
Ele lida com o presente e, sim, tudo isso ê o que acontece.
Estavam largando um cara bêbado na rua.
Poderia ser o cara que estava tocando,
poderia ser Charlie Parker. Mas esse fato nâo altera a força
do que ele diz. ''Sim, eu fiz aquilo
e tambêm faço isso.'' É a variaçâo da humanidade
presente nesse estilo musical.
John William Coltrane, como todos os grandes jazzistas inovadores,
buscou levar a música a lugares nunca alcançados, e acabou por se tornar
para alguns de seus admiradores, uma espêcie de redentor e uma fonte
de inspiraçâo para toda uma geraçâo de novos músicos.
Coltrane ê como ''o pai''. Foi ele quem nos liderou
na busca espiritual, quem realmente levou a consciência
da espiritualidade do jazz às pessoas.
lsso já existia antes, mas Coltrane levou a coisa
a outro nível. Ele tornou essa busca o tema principal.
John Coltrane nasceu em 1926, em uma pequena cidade da Carolina do Norte
chamada Hamlet, foi criado em High Point
e foi morar na Filadêlfia quando era adolescente.
Lá, ele estudou saxofone em dois conservatórios diferentes,
tocou rhythm and blues, ouviu Lester Young tocar,
e aí conseguiu um emprego na big band chefiada por Dizzy Gillespie.
Ele ficou famoso tocando com Miles Davis, que o demitiu
por um período de tempo porque Coltrane havia se tornado
viciado em heroína.
Em 1957, enquanto tocava com Thelonious Monk,
Coltrane passou por aquilo que chamou de ''despertar espiritual''.
Ele deixou as drogas, a bebida, o cigarro, e começou a estudar
religiões orientais, assim como música oriental e africana, dando início a uma
incansável busca por significados que ele nunca abandonou.
Durante o resto de sua vida, John Coltrane pareceu determinado
a encher sua música com mais de todas as coisas...
mais notas, mais idêias, mais energia.
John Coltrane nunca descansava.
Ele sempre precisava
estar em movimento. Quando descobria alguma coisa,
percebia que ainda faltava descobrir 10 ou 20 outras.
Ele tentava ir sempre alêm e nunca deixava
sua arte estagnar ou mesmo repousar.
Estava sempre em movimento.
John Coltrane elevou os padrões
do que significa ser um músico dedicado.
Acho que um dos discos mais definitivos de Coltrane
ê ''Chasin' the Trane'', gravado em 1961
ao vivo no Village Vanguard.
Um lado do disco tem um solo de 16 minutos.
Ele toca uns 80 refrões. Eu tentei contar uma vez,
mas ê impossível nâo se perder,
pois ele vai alêm dos limites do blues,
e a percussâo o segura um pouco.
Mas dá para senti-lo delirar.
É claro que muita gente nâo entendeu,
e achou repetitivo e monótono.
Mas a idêia era a profusâo.
A questâo nâo era mais o detalhe.
Nâo era mais: ''Puxa, foi um perfeito solo de 12 compassos
de Louis Armstrong em que cada nota conta,
como num poema.'' Nâo era um poema, e sim um longo romance.
E, como em Tolstoy,
a questâo nâo ê acertar todas as palavras,
e sim o efeito irresistível que tomava os ouvidos
e você sabia que estava em um mundo novo,
uma admirável terra nova para o jazz.
Em 1961 , Coltrane formou um novo quarteto: McCoy Tyner ao piano,
Jimmy Garrison no contrabaixo e Elvin Jones, um mestre
dos ritmos complexos, na bateria.
O próprio Coltrane costumava tocar muito o saxofone soprano,
o instrumento que Sidney Bechet,
o mestre de Nova Orleans, havia introduzido no jazz.
Sua impressionante transformaçâo de ''My Favorite Things'',
um sucesso sentimental de ''A Noviça Rebelde'', tornou-se
a primeira gravaçâo jazzística a ser largamente executada no rádio
desde ''Take Five'', de Dave Brubeck.
Logo, John Coltrane estava ganhando mais dinheiro do que qualquer outro
músico de jazz, com exceçâo de Miles Davis.
Mas Coltrane mal dava atençâo ao fato.
A música era tudo o que parecia importar para ele
e os homens com quem ele tocava compartilhavam sua crença
quase mística na importância daquilo que faziam juntos.
A energia, o poder que emanava daquele grupo
era simplesmente impressionante.
Do que mais me lembro de Birdland ê ver Coltrane.
Nos lugares mais baratos, as mesas eram bem espaçadas.
Nós nos levantávamos para dançar ao som de John Coltrane.
Foi o mais perto que cheguei de uma experiência religiosa.
A AVENTURA
Louis Armstrong e Duke Ellington, Charlie Parker e Dizzy Gillespie,
Sonny Rollins, Miles Davis e John Coltrane deixaram suas marcas
individuais trabalhando dentro de ritmos, harmonias e seqüências
de acordes estabelecidos.
Um homem rejeitou isso tudo.
''O jazz'', disse ele, ''precisa ser livre.''
Seu nome era Ornette Coleman.
''O tema que você toca no começo de uma cançâo ê o território'',ele disse
''e aquilo que vem depois, e que pode ter muito pouco a ver, ê a aventura.''
Quando vamos muito alêm dos acordes, surge a questâo:
''E por que usar acordes? E o que aconteceria
se esquecêssemos os acordes e nâo tivêssemos
uma harmonia definida? E se nós
apenas improvisarmos melodicamente?''
Certo. Outra questâo ê: ''Por que tocamos
sempre em compasso quaternário?
Que tipo de regra ê essa? E se nâo for assim?
E se o baterista pudesse improvisar
seguindo a cada momento o que o solista ou o conjunto faz?''
Se você nâo tem acordes nem um andamento-padrâo,
o que o baixista vai fazer? Como ele acha seu lugar?
E Ornette Coleman juntou um quarteto que fazia isso.
A música que ele tocava era livre.
Em uma garagem de Los Angeles, Ornette Coleman reuniu um grupo
de músicos jovens que pensavam de forma parecida:
o trompetista Don Cherry,
o baterista Billy Higgins,
e Charlie Haden, um contrabaixista de 22 anos das montanhas Ozarks
que tocara uma vez no palco do Grand Ole Opry.
Ele me convidou para ir ao apartamento dele.
Nós chegamos, ele abriu a porta,
e havia música espalhada pelo tapete, na cama,
nas mesas... Eu saquei meu contrabaixo,
ele se abaixou e pegou algo escrito à mâo, e disse:
''Vamos tocar isto.'' Eu disse: ''Ok.''
Eu estava com muito medo, sabe?
Ele disse: ''Escrevi a melodia aqui.
Embaixo, estâo os acordes. Essa foi a harmonia
que ouvi ao compor a melodia. Mas, quando tocarmos,
após eu tocar a melodia e começar a improvisar,
você toca os acordes, mas crie outros novos
a partir do que eu estiver tocando e da música.''
Eu pensei comigo: ''Finalmente, alguêm está me deixando
fazer algo que eu venho escutando todo esse tempo.''
Começamos a tocar, e um novo mundo se abriu para mim.
Foi como nascer de novo. Eu ouvia a música
com muito mais profundidade do que já tinha ouvido.
Era como uma urgência desesperada de improvisar
de uma forma completamente diferente.
Nós falávamos disso como se tocássemos
nem nunca ter escutado música antes.
E nós tocamos a noite toda, o dia todo, sem parar.
Acho que fizemos um intervalo para comer
e tocamos durante uns dois dias.
Foi minha 1a. experiência de tocar com o Ornette.
Coleman conseguiu encontrar uma pequena gravadora
que acreditou nele, e gravou dois discos.
Lentamente, sua fama começou a crescer.
Em novembro de 1959, Ornette Coleman mostrou seu novo som
ao centro mundial do jazz: Nova York.
O Five Spot, no East Village de Manhattan, era o ponto de encontro
favorito dos pintores expressionistas abstratos: Franz Kline,
Willem de Kooning, Jackson Pollock.
A gerência da casa se orgulhava dos shows dos músicos
mais ousados da cidade. E nada foi mais esperado
do que a chegada do Ornette Coleman Quartet.
Na 1a. noite em que toquei no Five Spot,
eu estava pegando meu contrabaixo,
Billi estava armando a bateria,
Cherry e Ornette estavam pegando seus trompetes,
quando olhei para o bar à frente do palco
e, de pê, no bar, estavam Wilbur Ware, Charlie Mingus,
Paul Chambers, Percy Heath...
Todos os grandes contrabaixistas
de Nova York estavam lá, olhando para minha cara.
E eu decidi fechar os olhos dali para a frente.
Acho que tocamos lá por 4 meses,
seis dias por semana. E, toda noite, lotava.
Uma vez, eu estava tocando de olhos fechados de novo
e, de repente, abri os olhos e vi um homem no palco
com o ouvido grudado no meu contrabaixo.
Olhei para Ornette e disse: ''Coleman, quem ê esse cara?
Faça ele sair do palco!'' Ele disse:
''Esse aí ê Leonard Bernstein.''
Leonard Bernstein proclamou a genialidade de Ornette e Lionel Hampton
pediu para assistir. Mas o trompetista Roy Eldridge
disse que já o tinha ouvido bêbado e sóbrio,
e nâo conseguia entendê-lo nem de uma forma nem de outra.
Miles Davis o definiu ''todo errado por dentro'',
mas John Coltrane ia tocar com ele durante os intervalos.
Coleman se considerava seguindo a tradiçâo do jazz.
''O Bird teria nos entendido'', ele disse. ''Ele teria aprovado nossa aspiraçâo
por algo alêm daquilo que herdamos.''
Durante os anos 50, muita gente já fazia música
com uma concepçâo aberta, o que eu chamo de ''grande sala'',
um lugar onde você pode cruzar uma fronteira
e nâo ter limites,
sem armaduras de clave, sem progressões de acordes
ou nenhuma forma determinada.
Depois, Ornette chegou a NY com seu quarteto,
ele resistiu, e fez sua música penetrar e ter êxito.
E ê isso que eu admiro no Ornette,
nâo só sua composiçâo e sua execuçâo,
mas o fato de ele ter sido insistente
e ter defendido sua música enfrentando todas as críticas
que eram feitas a ele.
Em 1961 , Ornette Coleman lançou um disco chamado ''Free Jazz''.
A capa mostrava uma pintura de Jackson Pollock.
Uma só música cobria os dois lados do disco.
Ele ajudaria a provocar um debate sobre a definiçâo de ''jazz''
que nâo terminou atê hoje.
Ornette Coleman chegou e disse:
''lsto ê free jazz.'' Mas o que ê mais livre do que o jazz?
Assim que diz ''jazz'', você está falando
de livre improvisaçâo... A essência ê a liberdade.
Por que alguêm tentaria ''libertá-lo''
se toda a idêia da arte ê criar uma forma de defesa
contra a entropia ou contra o caos?
Essa ê a funçâo do jazz.
Nâo ê ser amorfo e complacente consigo mesmo.
''Eu vou por esse caminho, eu vou por aquele,
e eu, por aquele outro.'' É como abraçar as ondas do mar.
E, como dizem, nâo ê possível abarcar a entropia.
Nâo ê possível abarcar o caos.
Queríamos muito que as pessoas gostassem da nossa música.
Mas acredito que os grandes músicos sejam, na maioria,
músicos livres. Se você ouve a improvisaçâo
de Coleman Harkins, de Thelonious Monk, de Bud Powell,
sente que eles improvisavam num nível que eu julgo
acima de qualquer categoria. Eles tocavam tâo livremente
e com tanta profundidade, que eu digo que eles
envolviam suas vidas naquilo. E foi isso que fizemos.
Estávamos dispostos a dar nossas vidas,
a arriscar nossas vidas, quase como se fosse
a linha de frente em uma batalha.
Nós queríamos poder dar a vida pelo que fazíamos.
Nos quarenta anos seguintes, a música vanguardista
que Ornette Coleman e muitos outros tocavam continuaria a inspirar
e a dividir o mundo do jazz. �